Uma conversa que atravessa o tempo. Escrever sobre corpo, emoção e linguagem transporta minha mente para o encontro com aqueles que inspiram a construção desse conhecimento, é impossível não ouvi-los enquanto elaboro essas palavras, então os trago aqui nesse texto em citações, quase como se pudesse ver suas expressões.
Em meados dos anos 1990, cientistas encontraram o esqueleto de Ardi perto de Aramis, na Etiópia. Uma década foi preciso para se dar conta do que fora achado: o primeiro dos símios bípedes. Ardi, da espécie Ardipithecus ramidus, datada de 4,5 milhões de anos atrás, é a ancestral das pernas, do quadril, da coluna vertebral e dos ombros das mulheres. Quando se olha para o esqueleto de uma mulher moderna, ainda se vê muito de Ardi.
O bipedalismo pode ter sido inicialmente uma adaptação postural, se hominídeos primitivos não tivessem se tornado bípedes, os seres humanos provavelmente não teriam se desenvolvido como o fizeram. Quando penso em Ardi não consigo deixar de imaginar que recursos internos foram esses que a fizeram se locomover sobre suas patas traseiras.
A cientista Cat Bohannon, que conheci recentemente pelo seu maravilhoso livro Eva, faz uma provocação:
“Num mundo em transformação, com uma variabilidade alimentar cada vez maior, Ardi teria de se aventurar mais longe para conseguir alimento suficiente, e uma vez que conseguisse teria sido uma grande vantagem para ela poder ir embora carregando um tanto nos braços, ainda mais se precisasse, além disso, carregar um bebê. Se você fosse uma hominídea primitiva como Ardi, como faria para expandir de modo importante seu alcance? É preciso andar para carregar coisas, sim. Mas é preciso também resistir. É preciso recorrer a um segundo de fôlego. É preciso passar do paredão. É preciso sobreviver no pântano. As coisas que nos permitem sobreviver no pântano são o que nos torna humanos”. (Bohannon, 2024, grifo nosso)
Viver é um negócio muito perigoso, para Guimarães Rosa já era sabido. Uma humanidade evolui e prospera em natureza expressada e experimentada. Somos produto de uma seleção casual e acidental ocorrida em longuíssimos períodos de tempo. Contudo, seres inacabados. Dotados de uma faculdade de se aperfeiçoar, humanos são geneticamente programados para aprender, e nos construímos através das relações com o mundo exterior.
O que é isso que nos anima e nos coloca em pé? Sem dúvida, somos criaturas com uma capacidade imensa em inovar e socializar, de imaginar e se emocionar.
“Toda uma gama de possibilidade é oferecido pela natureza no momento do nascimento. Isto que é atualizado é construído pouco a pouco, durante a vida, pela interação com o meio. O uso do corpo é assim significado da maneira com a qual os homens se apropriam do dado e o transcendem para se forjarem e se polirem; se formatarem e se produzirem, tal como se faz nas obras de arte. O corpo está ao mesmo tempo pronto e a aprontar.” – Chantal Jaquet, A força do corpo Humano.
Me pergunto o que pode exatamente o corpo? Quem não se emocionou com a nossa pequena grande Rebeca Andrade, que, com três cirurgias para corrigir rompimentos do ligamento cruzado anterior no joelho (predominante em mulheres), tirou o nosso fôlego desempenhando toda sua arte nas Olimpíadas… Olimpíadas dos desejos. Nós não desejamos uma coisa porque ela é boa, mas ela é boa porque nós a desejamos.
Nesse Agosto de 2024, somam 24 anos que minha trajetória é marcada pela relação com práticas de movimento corporal, como movente, e professora de pessoas moventes, algo simplesmente se constata: para o corpo, não se trata apenas de viver, mas de saber viver, não se trata de se deixar levar, mas de aprender e expressar. O movimento, a linguagem e a expressão estão na origem da emoção.
O neurobiólogo Humberto Maturana, que conheci com Káritas Ribas, marca presença ilustre nos meus saberes. Maturana sustenta com elegância e ciência que o viver na linguagem surgiu entrelaçado com o emocionar.
“É a emoção que define a ação. É a emoção a partir da qual se faz, ou se recebe em certo fazer, que o transforma numa ou noutra ação, ou que o qualifica como um comportamento dessa ou daquela classe. Sustentamos que nós, seres humanos, existimos na linguagem, e que todo ser e todos os afazeres humanos ocorrem, portanto, no conversar – que é resultado de entrelaçamento do emocionar com o linguajar.” – Humberto Maturana, Amar e Brincar.
Nós, humanos, somos excelentes em produzir cultura, é possível dizer que neste momento a forma mais poderosa de evolução não seja a biológica, mas a evolução cultural – a mais notável força de mudanças no planeta e que está transformando nossos corpos de maneira radical. A cultura importa, disse o cientista Sapolsky: “nós a carregamos conosco para onde quer que formos. Não pergunte o que um gene faz, pergunte o que faz um gene em determinado ambiente.”
Do recôncavo das minhas lembranças, uma voz suave e poderosa pronuncia: “O que no corpo e voz se repete é também uma episteme. A palavra oraliturizada se inscreve no corpo e em suas escansões, e produz conhecimento.” – Leda Maria Martins, Performance do Tempo Espiralar.
Poesia é tempo, assopra o vento sempre que estou nas montanhas.
Carol Seabra (Fisioterapeuta, pesquisadora e professora de Movimento)