Razão-Emoção no Coaching: Tornando-se Quem Se É

abr 4, 2016 | Artigos

Desde tempos imemoriais o homem tenta dar conta do binômio razão-emoção, seja valorizando um em detrimento ao outro, seja tentando unificá-los indistintamente, caindo muitas vezes na armadilha reducionista da hiper simplificação. Penso que não se trata de um conflito, mas de uma interação complexa e ampla, que abrange diversas compreensões de razão e emoção, afeto e pensamento. Nesse texto compartilho minha visão sobre o tecido vivo que vejo possível quando pensamos razão-emoção nas práticas de coaching.

Quando se passa por uma formação que, não se limitando a oferecer condições para ampliar a visão de mundo e a capacidade de atuação de outro ser humano, pretende também gerar aprendizagem, torna-se quase inevitável a busca por uma coerência com suas práticas, vivenciando-as e acercando-se de seus resultados. Para mim, o contato com a filosofia, seus conceitos e sua inspiração, é imprescindível para criar um território fértil de elaboração e experiências.

Escolhi abordar o tema razão-emoção usando as lentes da filosofia, consciente de que algumas vezes ela é associada por muitos a algo abstrato, da ordem do conhecimento puramente teórico e sem grandes aplicações na realidade, o que se opõe à visão geral do coaching.

O filósofo muitas vezes é tido como aquele ser um tanto desvinculado da realidade. Ouvi algumas vezes a definição da filosofia como a “ciência com a qual ou sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Longe de pensar que a filosofia tem que ser útil, talvez a proposta seja encontrar a beleza da inutilidade, e deixando de servir a algo, ela passa a ser soberana – servindo a si própria – sendo guardiã da ética, da liberdade, não se subordinando a nenhum outro interesse que não seja os dela mesma.

Marilena Chauí nos arrebata com um parágrafo poético de seu livro Convite à Filosofia dizendo:

Qual seria, então, a utilidade da Filosofia? Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às ideias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes. (Chaui, 2011)

Quero trazer um pequeno recorte do pensamento do filósofo holandês Baruch Spinoza na tentativa de empreender o desafio da articulação razão-emoção na prática profissional do coach. Pensador que me traz muitos tormentos, ele é visto por muitos outros pensadores como uma espécie de “padrinho” com grande influência no pensamento contemporâneo. O grande filósofo Henri Bergson disse que “todo pensador deve ter duas filosofias, a sua própria e a de Spinoza”.

O pensamento de Spinoza aponta uma saída para a vida, abrindo por entre as pedras um caminho que pode nos guiar em parte de nosso fazer profissional. A partir de nosso encontro com sua obra temos a possibilidade de encontrar uma tonalidade afetiva que nos diz que o pensamento é inseparável da experiência afetiva, ou seja, nunca encontraremos nesse pensador a razão subordinando à emoção.

Sendo a vida portanto puro afeto, ele nos apresenta a oportunidade de experimentarmos um amor à vida. Segundo Spinoza, tudo que fazemos está regido e acompanhado pelas paixões. A razão não escapa à influência das emoções pois estas são seu motor, ou seja, as paixões alavancam a razão no sentido de sua superação, tornando o homem mais potente em sua afirmação da vida.

A afirmação, ou seja, a crença de que não há nada na vida que possa ser negado, como o corpo ou o desejo torna o homem um ser criador, capaz de se expressar pois não valoriza a falta e não tenta reprimir-se ou diminuir-se.

Na contramão de muitas paisagens teóricas até hoje bastante valorizadas, que acreditam que se deixarmos a vida à mercê das emoções esta será uma desordem, uma barbárie, Spinoza postula que o que nos cabe é compreender nossa natureza, construindo assim um bom caminho, o caminho do florescimento do ser humano na alegria.

A ética de Spinoza é a ética da alegria. Para ele, só experimentamos os afetos de tristeza porque não compreendemos a causa do que nos entristece. Ao compreendermos profundamente o que nos entristece podemos transformar os afetos de tristeza em afetos de alegria. Tudo é afeto para Spinoza e ele nos apresenta a possibilidade de converter o nosso pensamento no mais potente dos afetos, naquele capaz de transmutar outros afetos.

Diferentemente da tradição filosófica, que afirma que podemos compreender alguma coisa quando tiramos a emoção “do jogo”, renunciando a dimensão afetiva da experiência, sendo racionais e objetivos, Spinoza entende o pensamento como afeto e que só podemos conhecer alguma coisa a partir desses afetos.

Exemplificando: você sente inveja de um colega que ganhou uma promoção no trabalho e tenta compreender racionalmente por que está sentindo inveja, essa compreensão racional normalmente não faz com que você sinta menos inveja. Nesse momento existe a tendência de se criarem narrativas, ditas racionais, para explicar o afeto. “Eu sou muito mais competente, mas meu colega sempre bajulou meu chefe”, “essa empresa só valoriza quem vem de fora”, etc. Essa racionalização não ajuda na transformação da tristeza em bem-estar.

A proposta spinozana vem justamente possibilitar que um afeto de tristeza possa ser ultrapassado por um afeto mais forte, como o de alegria, por exemplo. As coisas em si, não teriam nada de bom ou ruim, é nosso ânimo que é afetado por elas e o entendimento afetivo dessas afecções possibilita que tenhamos no conhecimento um caminho para a liberdade.

Qual é o caminho traçado por Spinoza que pode nos ajudar a pensar nossa prática de coaching, utilizando a noção do pensamento/conhecimento, razão como afeto?

Tido como “o filósofo dos encontros”, a proposta é fazer de nossa vida o palco de bons encontros. É exatamente no encontro que se dá o processo de coaching, quando um profissional tem a possibilidade de colaborar com seu cliente na compreensão de suas emoções, articulando-as com a razão em sua expressão e na construção de novas possibilidades de ação.

O que faz, por exemplo, com que uma pessoa busque uma transição de carreira? Quais são os afetos que movem a busca desse indivíduo único? O que realmente importa e precisa ser conservado a partir do qual todo o entorno pode ser mudado? Que histórias esse indivíduo viveu que fazem com que busque determinado caminho? Quais as ações possíveis dada a emocionalidade prevalente?

O homem das paixões tristes é o homem do medo e da falta, aquele que cultua a tristeza e que sempre está projetando em algo distante uma saída para suas dores. Não se vendo como responsável por sua existência, é facilmente tiranizado por aqueles que prometem curas milagrosas, fortunas fáceis, fama, visibilidade e reconhecimento absolutos. Temos a oportunidade, os processos de coaching, de questionarmos essas “ilusões da consciência”, termo utilizado por Spinoza, abrindo caminho para a construção de nós mesmos.

A expressão “como alguém se torna o que é”, do poeta Píndaro, presente como subtítulo da obra Ecce Homo de Nietzsche, diz dessa atividade de criar a si mesmo, sendo mestre e escultor da própria vida. Nesse lugar nasce a possibilidade do aprendizado de novas formas de pensar, de agir, de viver e de conviver, e essa é a proposta que o coaching ontológico nos apresenta.

Tendo seu inicio no desejo daquele que se dispõe a percorrer o caminho de aprendizagem de “torna-se o que se é”, o pensamento como afeto poderá impulsionar o homem na realização desse objetivo, desprezando inclusive todas as considerações teóricas contrárias a ele. Haja vista as grandes personalidades que mudaram o curso da história, contradizendo ideias consolidadas e mudando paradigmas.

Nossas emoções variam constantemente e é importante a aquisição de uma sensibilidade não apenas para perceber nosso estado emocional como também para a percepção de suas variações. Essa sensibilidade pode colaborar para utilizarmos a razão à serviço de nosso desenvolvimento harmonioso, pois o intelecto nos apresenta saídas favoráveis nos colocando numa disposição existencial que tem a ver com a experiência da criação, ou seja, numa postura criativa e criadora como modo de estar no mundo.

É na criação que podemos nos eternizar. A eternidade não como a imortalidade da alma, mas como uma intensidade que se passa no aqui e agora, que depende de nossa capacidade de pensar e perceber nossos afetos. No encontro com outros, passamos a ser capazes de nos apropriar dessa eternidade em vida.

 

Por: Káritas Ribas

Referências Bibliográficas:
Chaui, M. (2011). Convite à Filosofia. São Paulo, Ática.
Echeverría, R. (2008). El Observador Y Su Mundo – Volumen I. Santiago – Chile, J. C. Sáez Editor.
Martins, A. (2009). O Mais Potente dos Afetos: Spinoza e Nietzsche. São Paulo, WMF Martins Fontes.
Martins, A., et al. (2011). As Ilusões do Eu: Spinoza e Nietzsche. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

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