Coaching Ontológico, nome e sobrenome cujos desafios para a explicação, em poucas palavras, se impõe rotineiramente, especialmente pelo fato de envolver conceitos filosóficos que, se tratados com superficialidade, podem facilmente cair na armadilha da hiper-simplificação, tão comum ao pensamento disjuntivo (ou linear).
À moda de Deleuze, filósofo francês contemporâneo, declaro com antecedência que roubarei conceitos. Valho-me de pensamentos, textos, artigos e fragmentos de muitos autores e nesse sentido, Deleuze insiste e autoriza: o roubo (de conceitos) é criativo, pois, ao nos apropriamos deles, os modificamos e os fazemos nossos.
Coaching Ontológico
Falo, portanto, do “meu” Coaching Ontológico, daquele que me atravessa e que produzo diariamente em meu fazer profissional. Falo desse ritmo que tenho dançado há tantos anos e que, a cada dia, torna-se mais vivo e cheio de sentido, que ganha mais corpo e permite expandir os limites do meu mundo.
Minha pretensão não é pequena: é a de fazer com que cada leitor se apaixone pelo Coaching Ontológico ou, pelo menos, seja tocado por ele, pela beleza dessa profissão, cujo cerne é o amor em seu sentido menos usual, isto é, aquele que aceita o outro como verdadeiro outro na convivência.
Sobre a Ontologia
A busca pela compreensão do homem enquanto tal gera inquietação e curiosidade no próprio homem desde tempos imemoriais. Saber de sua essência, do que o constitui e o diferencia incentiva estudos científicos e filosóficos.
Os gregos antigos, que cunharam o termo ontologia, fizeram-no para dar conta da compreensão do ser como tal, do entendimento sobre a existência de algo e da busca de seu fundamento. Esse conceito, na Grécia antiga, confunde-se com a metafísica[1] e procura categorizar a essência de uma entidade. A ontologia foi chamada de ciência do ser enquanto ser e sua pergunta fundamental é “o que é?”. Em outras palavras, quando alguém se pergunta “o que é o ser humano?”, está formulando uma pergunta ontológica.
Distintamente da metafísica, que é entendida como ciência para além da física, faremos o uso do conceito de ontologia num sentido particular e, para isso, nos apoiaremos no filósofo alemão Martin Heidegger. Sua filosofia se debruça sobre o modo particular de sermos seres humanos, ou seja, faz referência à forma como interpretamos e significamos o que é e o que nos é possível enquanto seres humanos. Em seu livro Ontologia da Linguagem, Rafael Echeverria nos oferece um exemplo:
Quando dizemos “a maça é vermelha” estamos supondo que, como ser humano que somos, podemos determinar de que cor é a maça. Toda ação, todo dizer, pressupõe um juízo sobre o que, como seres humanos, nos é possível. (ECHEVERRÍA, 2011, p.29)
Dessa forma, cada vez que se dizemos algo, cada vez que atuamos no mundo, manifestamo-nos como seres humanos que somos, que, além de agirem sobre um objeto, expressam sua ontologia nesse sentido que queremos conferir. Nos dias atuais, nos aproximamos das coisas e as percebemos a partir da sua utilidade, do questionamento de sua função e serventia. Heidegger faz uma severa crítica ao esquecimento do ser, à sua objetificação e identificação com qualquer outro ente e à consideração dele como mais um recurso disponível. Não precisamos, apesar disso, fazer uma oposição isoladora ao ente como recurso, ao seu modo de operar, ao seu fazer.
O homem é um ser histórico, que age e pensa em sintonia e em articulação com o mundo, que confere sentido e o interpreta a partir de sua historicidade. Suas possibilidades de ser são historicamente constituídas e, simultaneamente à perspectiva histórica, ele tem a possibilidade da criação. Deste modo, o novo está disponível ao homem a cada momento, pois ao conferir sentido ao mundo, ele cria realidades.
Nesse ponto, o conceito de autopoiese, cunhado por Humberto Maturana e Francisco Varela, e sua dimensão filosófica, desenvolvida por Gilles Deleuze e Felix Guattari, ajudam a pensar uma nova abordagem para a ontologia. Podemos olhar para o homem como um processo de autocriação permanente, não mais no sentido de reprodução histórica exclusivamente, como o evolucionismo postula, mas enquanto criação da diferença, “autocriação sem instância criadora, sem finalidade que lhe dirija a trajetória e sem destino previsível”. (KASTRUP; TEDESCO; PASSOS, 2008, p.53)
A Ontologia e Prática do Coaching Ontológico
A ontologia, como a definimos, é a doutrina do ser, que irá indagá-lo tematicamente e discuti-lo. Temos, na frase de Humberto Maturana, a pedra angular de nossa compreensão: “tudo que é dito, é dito por um observador”, ou seja, cada expressão – seja ela por meio da linguagem ou da ação – de um determinado sujeito, fala do observador que ele considera que é. Este assume um lugar de fala distinto das generalizações, das verdades em si e da ideia de que exista uma realidade independente dos “olhos” que a percebe e a significa.
As inquietudes humanas têm sido abordadas em cada momento histórico de formas distintas e o movimento do qual fazemos parte – o do coaching ontológico – visa abordá-las por meio da ontologia da linguagem, que tem como postulados:
– Interpretamos que os seres humanos também são seres linguísticos. Reconhecemos a linguagem como elemento central na natureza do ser humano agregada às dimensões biológica e psicológica. Esses três domínios, corpo, emoção e linguagem, estão coerentemente interligados.
– Interpretamos que a linguagem, além de descritiva, é também geradora. Podemos mesmo postular a prioridade da natureza linguística sobre a biológica e a psicológica, pois é por meio dela que conferimos significado à nossa existência, dando sentido aos domínios do corpo e da emoção. Assim, a linguagem não apenas fala das coisas. A linguagem gera o ser humano e cria realidades. Distintos mundos emergem conforme a maneira como operamos na linguagem, que é talvez o fator mais importante na definição da forma como nos vemos a nós mesmos ou somos vistos pelos outros.
– Interpretamos que os seres humanos se criam a si mesmos, na linguagem e através dela. Nossa cultura tradicional admite que cada indivíduo nasce dotado de uma forma de ser particular e imutável. A vida seria assim meramente o espaço em que essa natureza inata se revelaria. A ontologia da linguagem assume uma posição radicalmente contrária, defendendo que a vida é o espaço em que os indivíduos criam a si mesmos. Nada é de uma forma determinada, que não permita infinitas modificações. Essa interpretação nos permite ganhar domínio sobre nossas próprias vidas, nos auto-implicando em sua construção. Esta é a proposta que nos apresenta a ontologia da linguagem.[2]
Reiteramos que uma ontologia, enquanto compreensão do que é ser humano, é a interpretação a partir da qual fazemos todas as demais interpretações, mesmo que isso, na maior parte do tempo, esteja implícito.
Por não entendermos que os seres humanos tenham um ser fixo e imutável, não-histórico ou atemporal, acreditamos que vivemos em constante e contínua produção de nós mesmos, do mundo e com o mundo. Essa compreensão faz possível que participemos da construção de um observador que atua para que suas metas se concretizem – ação comum ao coaching de forma geral.
O que se busca nas conversações de Coaching Ontológico é que juntos – coach e coachee, profissional e cliente – abram espaço para o novo, que possam criar uma realidade diferente daquela em curso, incluindo o contexto histórico, aprofundando o conhecimento de si e formulando questões sobre os temas levantados pelo coachee.
Usamos o termo “questões” no mesmo sentido que Heidegger o faz em seu livro “Ontologia”, ou seja,
[…] questões não são ocorrências; questões são tampouco “problemas” hoje em dia em uso, que “impessoalmente” assume ao acaso pelo que se ouve dizer e se lê nos livros […]. Questões surgem na discussão e confronto com as “coisas”. E coisas há aí somente onde há olhos. (HEIDEGGER, 2013, p.11)
Assim, ontologia da linguagem e, consequentemente, o coaching ontológico só podem ser encarados ao nos apropriarmos desses conceitos, caso contrário serão tratados de uma forma inaceitável a seu propósito, que é o de ampliar a envergadura de um fazer refletido e da reflexão na e para a experiência e criação de uma realidade desejada.
Nome e sobrenome se unem para que desejo e mundo fundam-se na criação de um futuro potente.
Por: Káritas Ribas
[1] O termo metafísica pode ter muitos sentidos. Utilizo-o, aqui, em seu sentido aristotélico, enquanto doutrina que busca a essência das coisas para além da física.
[2] Trecho retirado do texto Coaching Ontológico – O que é? – produzido pela autora em colaboração com Ana Gomes, Karla Teixeira e Iuri Barroso, publicado no Blog do Instituto Appana, acessível pelo link: https://www.appana.com.br/coaching-ontologico-o-que-e/
Bibliografia
ECHEVERRÍA, R. Ontología Del Lenguaje. Santiago – Chile: J. C. Sáez Editor, 2011.
HEIDEGGER, M. Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
KASTRUP, V.; TEDESCO, S.; PASSOS, E. Políticas da Cognição. Porto Alegre: Editora Sulina, 2008.