As palavras não são triviais. Com essa declaração, o biólogo chileno Humberto Maturana convida à a um estado de observação para a forma como se expressa e para o mundo que se constrói por meio das palavras. Para ele, essa construção de mundo se faz por meio das distinções, ou seja, fazer distinções é muito mais do que separar, é criar. A distinção é uma operação mental que cria o mundo.
Quando alguém olha para o céu do deserto do Atacama, verá estrelas, ou seja, segundo sua percepção e seu código linguístico, pode destacáa-las do céu como um elemento diferente deste, assim, céu e estrelas apresentam-se como coisas distintas entre si. Se um astrônomo olha para esse mesmo céu, certamente o que ele poderá ver são mais do que estrelas. Ele verá planetas e constelações e, por fazer novas distinções, cria outras possibilidades de ação. Da mesma forma, se um astrólogo olha para a mesma paisagem, o que poderá ver, além de estrelas, são signos e novamente outra realidade pode ser construída.
Nesses termos, pensar nas distinções no coaching ontológico, é pensar nos diferentes mundos que se pode experimentar.
Distinções
Apresentaremos, nesse artigo, algumas distinções. A primeira delas é a de aprendizagem. No domínio do coaching ontológico, quando se fala em aprendizagem o que se quer dizer?
A aprendizagem, para além do acúmulo de informações sobre determinado assunto, diz respeito à capacidade de modificar a forma como se age no mundo. Quando alguém busca um processo de coaching ontológico, entendemos que o faça para dar conta de determinada inquietação. Algo o incomoda e o impulso para a mudança não encontra uma forma adequada de expressão. O processo de coaching intenciona dar respostas à essa inquietação, por meio do aprendizado que se faz necessário para que novas ações possam ser empreendidas.
Ou seja, como na frase de Lao-Tsé, “saber e não fazer, ainda não é saber”. É esse aprendizado transformacional que se busca, um aprendizado no sentido de modificação das ações de forma refletida, que conduza a um resultado diferente daquele que estava se dando até então (ou até o momento do processo de coaching ontológico). Aprendizagem portanto, é o entrelaçamento de informações, reflexões e ações, no intuito de dar sentido à existência.
Outra palavra muito utilizada nos processos de coaching é a palavra meta ou objetivo. Muitas definições de coaching o conceituam-no como um processo que pode incrementar capacidades e competências para atingir metas e objetivos. Aqui também pode-se fazer uma distinção bastante importante. Usualmente, quando se pensa em meta, imagina-se uma situação ideal, desejável e esta passa a ser a meta, ou seja, o lugar para onde se quer ir, o lugar almejado, o alvo. Traça-se um plano de ação e esse deve ser executado com disciplina para que a meta seja atingida.
Nos casos em que não houve sucesso em sua consecução, provavelmente o planejamento estava errado, não houve disciplina ou força de vontade suficientes. Atingir uma meta, portanto, é conseguir chegar ao ideal, é fazer com que a vida se iguale à ideia. Nos processos de coaching ontológico que conduzo, tenho experimentado uma forma distinta de pensar a meta e empreender ações.
Procuro pensar a meta como uma instância virtual. O que isso quer dizer?
Em primeiro lugar, é preciso conceitua-lo. Diz-se do “virtual”:
A palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivado por sua vez de virtus, força, potência. Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência, e não, em ato. O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado, no entanto, à concretização efetiva ou formal. A árvore está virtualmente presente na semente. Em termos rigorosamente filosóficos, o virtual não se opõe ao real,
mas ao atual: virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras de ser, diferentes. (Levy, 1996, p.15)
O virtual, nesse caso, é uma dimensão efetiva do real sem ainda haver se concretizado, se materializado. O virtual não é uma não-realidade. Não se define em oposição àquilo que é real.
O atual é o complemento ou o produto, o objeto da atualização, mas esta não tem por sujeito senão o virtual. A atualização pertence ao virtual. A atualização do virtual é a singularidade, ao passo que o próprio atual é a individualidade constituída. O atual cai para fora do plano como fruto, ao passo que a atualização o reporta ao plano como àquilo que reconverte o objeto em sujeito. (Deleuze, 1996, p.51)
Não raro, confundimos o virtual com aquilo que é tecnológico, que diz respeito à informática. Essa é apenas uma das formas de se utilizar o termo virtual, virtual é em primeiro lugar, um modo de ser particular; é um modo diferente de estabelecer relações que foi largamente confundido, na expressão da linguagem comum, e no uso corrente, com o falso, o ilusório, o imaginário ou a fantasia. (Caio)
A meta pensada como virtualidade abre espaço para “…um modo de ser fecundo e poderoso, que põe em jogo processos de criação, abre futuros, perfura poços de sentido sob a platitude da presença física imediata” (Levy, 1996, p.12). Não se deve, entretanto, cair na tentação de igualar o virtual ao possível Contrariamente ao possível, estático e já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer e que chama um processo de resolução: a atualização.(Levy, 1996, p.12)
Ou seja, pensar mundos possíveis pode ser continuar pensando o estático, o ideal já construído previamente. Pensar o virtual é criar, é exercer a potência no sentido da transformação, da invenção do que ainda não é.
Nesse sentido, o processo de coaching contribuiria para a atualização do virtual, para a construção, na dança com o mundo e com o passado, da criação de um modo de viver único. Nesses processos de coaching ontológico, não realizamos ideais, criamos mundos por meio da atualização do virtual.
Aqui, ainda é preciso reconhecer uma importante diferença entre realização e atualização. A realização é uma “ocorrência de um estado pré-definido”, enquanto a atualização é uma “invenção de uma solução exigida por um complexo problemático”. (Candido)
Dizendo de outra forma, a realização de uma meta-ideal, nos moldes mais tradicionais, seria como a operação de decalcar no mundo uma imagem pré-definida, o “certo”. Diferentemente disso, atualizar uma meta-virtual seria como inventar novas soluções e novas respostas às questões que vão surgindo a cada passo do processo.
É possível, dessa forma, que nesse espaço haja um “descolamento” de um modo de viver já conhecido, habitado na transparência, ou seja, sem dar-se conta do que acontece e de como se dá cargo do que se apresenta.
O termo transparência remete aquilo que não é percebido, que é vivido no automático, exceto que essa transparência se quebre. É na quebra da transparência que surgem as inquietudes que podem se transformar em processos criativos.
Por exemplo, quando uma pessoa pega seu carro pela manhã para ir ao trabalho, ela não pensa nas centenas de engrenagens e mecanismos envolvidos no funcionamento do carro. Ela simplesmente dá partida e sai dirigindo. A mecânica do carro está na mais absoluta transparência. Se em algum momento ela sente o volante perder a estabilidade, dá-se conta de que algum problema pode ter ocorrido. É esse dar-se conta que chamamos de quebra da transparência. É o momento em que alguma ação se faz necessária para dar cargo conta do problema. É nesse espaço que se dá o processo de coaching ontológico.
E, por isso, os processos de coaching ontológico podem ocupar um lugar de destaque na contemporaneidade, por se tratar de serem espaços qualificados de conversa, de criação de novas realidades, que tendem a desafiar o instituído, potência para inovação e criatividade, tão desejados nos dias atuais.
Abordamos três conceitos – aprendizagem, meta e transparência – que são fundamentais na compreensão do coaching ontológico como um processo de ética, ou seja, como um fazer que busca com que cada indivíduo exerça sua liberdade e autonomia na escolha da vida boa para si.
Autora: Káritas Ribas
Pesquisadora em Complexidade, Filósofa, Coach Ontológica credenciada pelo ICF, Mestre em Biologia-Cultural, Psicanalista, fundadora do Território Appana, consultora com experiência de mais de 20 anos no desenvolvimento de lideranças, palestrante e eticista entusiasmada.
contato@institutoappana.com.br
Referências Bibliográficas
CAIO, L. D. C. S. O que é o Virtual? A Realidade Virtual [Online].
http://www.existencialismo.org.br/jornalexistencial/ricardovirtual.htm
CANDIDO, C. Notas Acerca do Virtual [Online].
http://www.caosmose.net/candido/unisinos/textos/ovirtual.pdf
DELEUZE, G. 1996. O Atual e o Virtual, São Paulo, Editora 34.
LEVY, P. 1996. O que é o Virtual?, São Paulo, Editora 34.