Ganhador do prêmio de melhor roteiro, melhor ator em Cannes e do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2017, O Apartamento é um impactante filme iraniano, do diretor Asghar Farhadi que tem se destacado pelas reflexões sobre a cultura e a sociedade de seu país. Ele conta a história de um casal profundamente afetado por um acontecimento que, além de dizer respeito aos direitos e à intimidade da mulher, é fruto da cultura na qual eles – e nós – estão inseridos.
Em uma das cenas emblemáticas do filme, o personagem principal, Amad, é questionado por um aluno sobre um livro de Gholam-Hossein Sa’edi (escritor iraniano), sobre como um homem se transforma em uma vaca, pergunta para a qual se segue a brilhante resposta: aos poucos.
Transformação
O que salta aos olhos nesse momento é a forma como pessoas e culturas vão se transformando, num contínuo devir, não exatamente ou necessariamente no que desejam, planejam ou intencionam. É o que ocorre de forma invisível, imperceptível em um curto espaço de tempo, e que ao mesmo tempo é repetido sistematicamente, que gera consistência,
cava sulcos.
Passando em revista aos assuntos mais frequentemente abordados nos processos e/ou programas de desenvolvimento humano – das terapias aos treinamentos – sejam nas organizações, na educação ou na área da saúde, grande parte dos temas relacionam-se ao que se faz de forma habitual, sistemática e consistente. É bastante comum, por exemplo, que se atue com o objetivo de potencializar lideranças, não por que as pessoas não sejam capazes de liderar, mas porque vão diligentemente “esquecendo-se” de seu poder pessoal, imersos em estruturas que as despotencializam.
Perde-se a capacidade de reconhecer os comportamentos e cenários nocivos e ao final, a dimensão do tempo precisou ser gasto administrando as consequências da desatenção à si, aos outros, ao contexto e às relações (ou composições, como tenho chamado).
Quebra de padrões
A quebra desses padrões geralmente se dá a partir de um acontecimento, tomado aqui no sentido de um evento que parece ocorrer subitamente e que, devido à sua natureza, interrompe o fluxo das coisas. Algo que promove a tomada de consciência do que até então estava oculto, como num insight, em uma tal intensidade que denuncia o estado das coisas e que exige atitude.
A natureza do acontecimento faz com que as coisas venham à tona, que os efeitos pareçam exceder às causas. É relativamente fácil perceber isso quando nos vemos apaixonados pois, as ações parecem desproporcionais, desmedidas ou quando, aparentemente não se sustentando em razões suficientes, tomamos decisões capazes de mudar o curso de nossa história.
A potência do acontecimento está na relação entre o que não se sabe que se sabe, ou seja, a sabedoria da experiência, da vida, o conhecimento que não consegue ser identificado pelo raciocínio, o saber intuitivo, os conhecimentos desconhecidos, e as ocorrências no mundo, as ocorrências cotidianas. É bastante comum que em um dia exatamente igual aos outros, em que nada de extraordinário tenha se passado, emerja a compreensão do que é necessário fazer para se dar conta de determinada situação que, até aquele momento não era uma questão. Parafraseando Caetano Veloso, “é impressionante a força que as coisas parecem ter quando elas precisam acontecer”, essa é a força do acontecimento.
Um acontecimento, nesse sentido portanto, nunca é algo externo à nós. Ao se dar na relação entre o indivíduo e o mundo, nos afeta, nos toca, nos move, nos impulsiona. Coisas acontecem o tempo inteiro no mundo e raramente coisas nos acontecem.
O que autoriza com que coisas nos aconteçam é a possibilidade de se fazer, a si próprio, território de passagem para o acontecimento, deixando-se penetrar, marcar, envolver. Dito de outra forma, é preciso se implicar, fazer uso dos sentidos para ampliar a capacidade de sentir, perceber e se deixar afetar.
Uma pessoa recentemente me disse que não ia visitar sua avó doente porque a avó chorava muito e que isso era muito difícil para ela. Ou seja, ao se alienar desse contato é como se a avó “desaparecesse” e a pessoa se afastasse de sua própria dor. Esse exemplo, que beira o extremo, deixa transparecer uma atitude de isolamento que muitas vezes é avaliada como protetora, porém ela priva, aleija do sentir. Constrói-se uma bolha que afasta cada um de si próprio, dos outros e do mundo. Deixa-se de lado a possibilidade de ser passagem, a escolha é pela solidão.
E aos poucos, da mesma forma como um homem se transforma em um vaca, torna-se possível esquecer-se o que é sentir, o que é se importar. De outra forma, é também aos poucos, que se pode intencionar um devir-desejo, ou seja, encaminhar reiteradamente a atenção para uma transformação que produza alegria, que aumente a força de existir.
Káritas Ribas
Multívaga, filósofa, psicanalista, mestre em biologia-cultural, pesquisadora da complexidade e do pensamento complexo, palestrante e professora.
Coach Ontológica. Idealizadora do Território Appana.