Do fazer a diferença e do impacto no mundo
Por Sandra Grasso, Káritas Ribas e Matheus Ribas
Algumas pessoas que procuram por processos de coaching têm expressado o desejo de “descobrir seu propósito de vida” ou sua “aptidão natural”, e, ao descobrir, acreditam que conseguirão encontrar um trabalho que traga felicidade. Também é comum que cheguem se queixando de um vazio interior, de uma falta de sentido e com vontade de encontrar sua razão de ser e de estar no mundo. Partindo dessas queixas, as declarações mais comuns são de quererem fazer algo que gere impacto na humanidade ou de quererem fazer a diferença no mundo. No entanto, quando questionadas sobre o que seria esse impacto ou essa diferença, só conseguem responder com outras frases prontas e vazias de sentido, como algo que melhorasse a vida das pessoas, que mudasse paradigmas, entre outras. Após alguma insistência no questionamento, é recorrente caírem na palavra “propósito”.
Retornada ao vocabulário diário por conta da boa intenção das linhas inovadoras de consultoria, de uns anos para cá, tal acepção da palavra passou a ser usada com mais frequência, principalmente nos meios corporativos, e transbordou para outros segmentos. “Ter um propósito” virou quase uma obrigação para o bem-estar das pessoas, passou a significar ser “do bem”, a ser sinônimo de ser organizado, proativo, seguro, saber o que quer da vida, ser adulto e independente. Pior que isso, ter um propósito tornou-se condição para pertencer.
Apologia ao Propósito
Muitas organizações que fazem apologia ao “propósito” alegam que a vida só tem sentido quando se tem o tal propósito. Além disso, afirmam que quando o encontrar, mesmo que as coisas não estejam muito bem, deve-se segui-lo a todo custo, com muita persistência e resistência, afinal o imperativo é o de que todos devem perseguir seu propósito. Este, por sua vez, é visto como imutável, escrito na pedra, um desígnio divino ou da natureza, uma missão dada por forças superiores, que, quando descoberta, será premiada com reconhecimento, admiração e felicidade.
A palavra foi sendo inflacionada e adquirindo diferentes significados de acordo com diversos interesses, os quais nem sempre são percebidos. Nos discursos corporativos, por exemplo, é muito recorrente que a organização reitere a necessidade de alinhar o propósito individual com o propósito da empresa, o que, em outras palavras, significa que o colaborador deve atuar de acordo com os objetivos da empresa.
E, nessa esteira, as ideias de “fazer a diferença” e “gerar impacto” também ficam infladas. Novamente, nesse contexto, aparecem as demanda de “descobrir” aptidões para impactar o mundo. As narrativas dessas pessoas dizem de trabalhos idealizados, nos quais se pode realizar grandes feitos para a humanidade e ser reconhecido, por isso, como uma pessoa especial, consciente, colaborativa, boa e justa. Via de regra, nas sessões de coaching, as pessoas que estão nessa busca dizem estar angustiadas e perdidas, porque não conseguem encontrar nem essa tal aptidão natural, muito menos o tão sonhado trabalho.
Em ambos os casos, da obrigatoriedade de um propósito e da busca da aptidão, percebe-se que o olhar está voltado para algum acontecimento externo que sinalize que a meta foi atingida, o que produz uma baixa implicação com a própria vida. Essas pessoas ficam à espera de que algo aconteça e indique o caminho certo. Dessa forma, agem como se propósito e aptidão fossem coisas abstratas e escondidas no mundo, que devem ser procuradas até que se encontre e acreditam que, ao encontrar, isso garantirá imediatamente o sucesso e a felicidade. Convenceram-se da ideia de que para “ser alguém” é preciso ter propósito, aptidão natural e saber o que querem para o resto de suas vidas. E daí vem a conhecida frase: “Agora que tenho x anos, não posso mais ficar indeciso, mudando de trabalho, de profissão, de vida”.
Na filosofia
Certamente, esse não é um discurso tão novo quanto parece. Há quase 2.400 anos, o filósofo Aristóteles, em sua Física II, declarou que “natureza é uma causa, uma causa que opera por um propósito”, essa conclusão é resultado de um argumento filosófico por analogia, que parte da ideia de que um artesão, antes de começar a trabalhar sobre a madeira, precisa de um propósito sobre o que fará com a madeira, então, de forma análoga, a natureza precisa de um propósito antes de começar a mover os seres.
Esse mundo aristotélico era o universo ordenado e geocêntrico da Antiguidade, no qual cada coisa cumpria seu papel, ocupando seu lugar próprio, seu lugar “natural”. Nesse sentido, a eudaimonia, o estado de plenitude, só podia ser atingida quando esse espaço era encontrado. No entanto, mesmo após a ciência ter provado que o Universo não é um cosmo finito, limitado e ordenado hierarquicamente, esse discurso permeia a fantasia pós-moderna, sendo a base lógica que sustenta a crença de que, ao encontrar esse “propósito”, ocuparia-se, de forma imediata, um lugar no mundo de plena satisfação, realização e contentamento.
Partindo de outra visão de mundo e de uma filosofia que pôde se debruçar sobre os dilemas humanos, o processo de coaching ontológico tem auxiliado na problematização destas inquietações. O Coaching Ontológico é um processo de aprendizagem transformacional, no domínio da ética, que tem a linguagem como ponto de partida para o processo de transformação, porque acredita que as pessoas significam a si mesmas e o mundo por meio das distinções que fazem, ou seja, por meio de palavras. Nesse sentido, o processo de coaching ontológico busca provocar os clientes para que experimentem palavras cujo significado as ajudem a construir suas próprias escolhas de forma consciente e relevante.
Além disso, baseado no tripé que constitui o processo de coaching ontológico – a consciência, a aprendizagem e a responsabilidade – os processos oferecem a possibilidade para que os clientes que demonstram essa angústia reconstruam sua forma de olhar para o “propósito”, redirecionando para si a responsabilidade de construí-lo e alterando, portanto, suas ações e narrativas acerca de sua realidade. Com isso, é importante esclarecer que a problematização não é contra o propósito em si, porque, a partir da consciência de si mesmo, este pode ser entendido como intenção, desejo, como expressão da potência de vida.
Dessa forma, nesse processo, o foco passa a ser a construção da vida como obra de arte, citando Nietzsche. Vida na qual propósito, aptidão e impacto acontecem como ações, como corporalidade e emoções. Construindo então uma realidade na qual os acontecimentos sejam verdadeiramente vividos e que a aprendizagem se dê no viver refletido e não apenas nas ideias. Devir em construção feita por escolhas, com tropeços, com indecisões, com tentativas, com mudanças de rumo, com lágrimas e sorrisos. Vida completamente vivida por si mesma.