A biologia-cultural é uma das disciplinas fundadas por Humberto Maturana, biólogo chileno indicado ao prêmio Nobel de fisiologia a partir de seus estudos sobre a vida e o ser humano.
Maturana considera o observador um ser não-estático. O observador é o ato de observar – assim como a onda não é a água e sim sua relação cinética – só podemos falar deste ao observar as dimensões de sua conduta.
Ele também considera que nem todas as interações humanas são interações sociais pois há uma significativa diferença nas emoções que fundam essas interações. Acontecemos a partir de uma base emocional que define nosso âmbito de convivência. Há uma distinção clara nos domínios de interações humanas sendo que nem sempre as relações entre humanos são relações sociais.
As relações sociais, nesta perspectiva, não se fundam no cumprimento de tarefas e sim na aceitação do outro como verdadeiro outro na convivência. “Nosso problema é que confundimos domínios, porque funcionamos como se todas as relações humanas fossem do mesmo tipo, e não são” (Maturana, 2002b, p.69). Nos discursos institucionais não costumamos ver essa distinção, tomando por sociais todas as relações humanas. No viver cotidiano percebemos essa distinção mais claramente pois, quando dizemos que “vamos socializar”, sentimos que o emocionar envolvido é diferente daquele que vivemos quando dizemos “vamos trabalhar”, por exemplo.
A biologia-cultura entende o amor como constitutivo do humano e o viver cotidiano, as redes de conversação, o linguajear que se dá na história desses seres vai garantir ou não que esse amor continue a ser exercitado, que as interações possam se manter interações sociais. É na convivência, com seus fluxos e seus transbordamentos, na vida na cultura e em seus espaços emocionais que o ser humano se realizará no amor ou no desamor, na aceitação de um outro como verdadeiro e legítimo outro na convivência ou na negação deste.
Nada do que acontece na vida dos seres humanos, acontece por ser necessário, vantajoso ou benéfico – essas qualidades que um observador dá no âmbito dos seus valores que olha as consequências e pensa as justificativas das preferências humanas. Ou seja, usamos as consequências de um processo para atribuir-lhe causas. Dessa afirmação podemos derivar que não progredimos em direção a algo melhor, reproduzimos modos de viver que se conservam e se mantém geração após geração, sendo sustentada pelo emocionar. O linguajear, o conversar é a ação que pode transformar a emocionalidade nas relações, e portanto, a comunicação mais autêntica e genuína que podemos ter.
A alteridade, portanto, ganha novo contorno pois não se trata apenas da distinção da diversidade ou da diferença que constitui um outro. Apesar das dificuldades que abrangem a compreensão que se tem do que denominamos outro, Maturana consegue fazer um contorno satisfatório que é capaz de orientar as noções e significados subjacentes à percepção imediata que temos do outro inserindo o ato de amar como aquele que dá origem ao modo de viver particularmente humano.
O Viver Cotidiano
Vivemos em uma cultura patriarcal que surgiu por meio das recorrentes alterações do espaço emocional da convivência e pelas condições de vida que tornaram possíveis a conservação desse emocionar, por meio do aprendizado pelas crianças, geração após geração, da emocionalidade presente nessa cultura. O tipo de humano que nos tornamos decorre da cultura que vivemos.
Podemos pensar sobre as condições em que se constituem as especificidades do exercício da vida amorosa de todo ser humano nos dias atuais. As emocionalidades vigentes, presentes em grande parte do mundo ocidental são as do consumo, posse, competição, hierarquia, poder, apropriação de recursos, dominação, desconfiança e ocultação da emocionalidade – tentamos o tempo todo “controlar” nossa conduta e nosso emocionar. Não temos experimentado frequentemente redes de conversações nas quais as emocionalidades predominantes sejam as do compartilhar, da colaboração, do cuidado consigo e com o outro, da cultura de paz. O mundo e as relações têm sido mercantilizados.
Os ideais igualitários se distorceram, “O antigo igualitarismo de fachada do mundo comunista dá lugar, assim, ao serialismo de mídia (mesmo ideal de status, mesmas modas, mesmo rock etc)” (Guattari, 2001, p.11)
As relações parentais e sociais infantis são a matriz para o aprendizado da emocionalidade e essa matriz terá mais chance de ser alterada se a mudança partir dos adultos que participam dessas redes de conversação que tenham consciência e desejo de fazer diferente. As mudanças emocionais têm o potencial de transformação cultural, porque nos afetam nos domínios da conduta, da ação, possibilitando um novo ethos. Uma mudança cultural é o mesmo que uma alteração na configuração do atuar e do emocionar dos participantes dessa cultura.
Não podemos no entanto, educar as crianças isoladamente, numa rede de conversação pacífica e colaborativa e esperar que consigam viver incólumes em um mundo que os receberá em redes de conversações competitivas e hostis. Seria como construir uma redoma de isolamento que impediria o contato com o mundo e suas vicissitudes, o que não considero como uma opção.
Minha hipótese é que possamos utilizar o diálogo, o conversar, bem como as tecnologias dialógicas disponíveis como um caminho possível para a construção de uma cultura emocionalmente diferente e eventualmente mais saudável da que vivemos. Me refiro ao diálogo, utilizando a proposta de David Bohm, importante físico estadunidense, que se dedicou concomitantemente em sua vida como cientista a refletir também sobre as possibilidades das conversações e do filósofo austríaco Martin Buber (Buber, 2004; Bohm, 2005; Buber, 2009)
Sua proposta, em meu entendimento, conecta-se aos conceitos biológicos-culturais de amor como a aceitação do outro como legítimo outro na convivência da seguinte maneira (1):
– No diálogo um grupo de pessoas pode investigar os pressupostos, ideias, crenças e sentimentos, tanto individuais como coletivos, que sutilmente controlam sua interação;
– O diálogo é uma maneira de observar coletivamente o controle exercido por valores e interações ocultos sobre nosso comportamento, fazendo-nos conscientes de diferenças culturais não percebidas anteriormente;
– No diálogo existe a possibilidade de dar-se a conhecer, de dizer de si, de expressar a vulnerabilidade em território seguro e compartilhado, sem regras rígidas e controle excessivo;
– O espaço dialógico é um espaço de compartilhamento de experiências e não de transmissão de informações;
– A escuta é parte do diálogo;
– As emoções e suas intensidades podem fluir livremente nos espaços dialógicos;
– O espaço dialógico possibilita o acoplamento estrutural, unindo diferentes e diferenças, gerando significado compartilhado.
Devemos refletir sobre nossa própria participação na construção de novas redes de conversação fundadas nos princípios dialógicos que respeitem nosso fundamento humano biológico-cultural como seres amorosos que habitam no linguajear. Essa reflexão nos convida a nos darmos conta de que o mundo em que vivemos tem a ver com conosco, com nossas ações individuais.
(1) – Utilizo como referência o trechos do texto Diálogo: Uma Proposta – gentilmente traduzido por Arnaldo Bassoli, com autorização de uso, conforme abaixo:
Copyright © 1991 – David Bohm, Donald Factor e Peter Garrett
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOHM, D. Diálogo: Comunicação e Redes de Convivência. São Paulo: Palas Athena, 2005. 167p.
BONDIA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ. [online], v. n.19, pp. 20-28, 2002. ISSN 1413-2478.
BUBER, M. Eu e Tu. 9ª ed. São Paulo: Centauro Editora, 2004.
______. Do Diálogo e do Dialógico. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.
GUATTARI, F. As Três Ecologias. 11ª ed. Campinas (SP): Papirus, 2001.
MAGRO, C. Linguajando o linguajar: da Biologia à Linguagem. 1999. (Tese de Doutorado em Linguistica). Programa de Pós-Graduação em Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
MATURANA, H. R. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. 3a. Reimpressão. Belo Horizonte Editora UFMG, 2002.
Artigo publicado em 03/05/2021, na edição 96 da Revista Coaching Brasil, em maio de 2021.
Káritas Ribas
Pesquisadora em Complexidade, Mestre em Biologia-Cultural, Filósofa, Psicanalista e Coach com Formação Ontológica – PCC pelo ICF. Sócia-fundadora do Appana Território de Aprendizagem.