Nos atendimentos de coaching, é bastante comum recebermos coachees que estão enfrentando situações pelas quais já passamos, afinal de contas somos muito parecidos em nossas diferenças – assim como muito diferentes em nossas semelhanças. Como adultos inseridos em uma cultura, vivemos, numa visão macro, histórias bastante parecidas. Casos desse tipo são grandes desafios e excelentes oportunidades de aprendizagem para nós, coaches. Além de demandarem nossa atenção redobrada, para não cairmos em armadilhas sobre as quais proponho a reflexão a seguir.
Há inúmeras e diferentes formas de nos posicionarmos enquanto coaches. Uma delas é como “sujeitos técnicos”, ou seja, profissionais que atuam a partir de uma tecnologia que denominamos Coaching, aplicando questionários, preenchendo fichas, elaborando questões, traçando planos de ação, determinando e checando tarefas, entre outros procedimentos que em si não são bons ou maus e podem ser conduzidos com maior ou menor eficiência pelo coach.
Uma outra forma de nos posicionarmos é como “sujeitos críticos”, munidos de diversas estratégias reflexivas, implicando-nos no processo – o que é absolutamente diferente de nos comprometermos com a solução da questão ou o atingimento da meta – e colocarmo-nos a serviço de nosso coachee para que ele elabore sua questão e encontre o melhor caminho de ação, no contexto apresentado.
Uma posição não exclui a possibilidade da outra, são complementares e tanto mais efetivo será um processo de coaching quanto mais amplas forem as possibilidades de o coach adotar muitas formas de abordar as questões que lhe são apresentadas. O risco apresenta-se quando nós, coaches, nos apropriamos do saber gerado em determinada experiência de nossas vidas, transformando-o num “saber universal”, numa verdade, ou seja, quando afirmamos que as coisas “são assim”, pois fomos tão profundamente atravessados por nossa experiência que passamos a chamá-la de verdade, generalizando seus efeitos e resultados para as demais pessoas. Costumamos fazer isso o tempo todo em nossa vida, pois, nos tempos atuais, há uma enorme pressão para que saibamos e opinemos sobre as coisas. Caso não o façamos, corremos o sério risco de sermos acusados de desinformados ou de uma pessoa sem posicionamento – o famoso “em cima do muro”, o que não é exatamente um elogio em nossa cultura.
Existe uma beleza, que normalmente é pouco reconhecida, quando nos colocarmos no lugar do não-saber. Beleza que é capaz de legitimar o outro em suas escolhas, mesmo que elas sejam diametralmente opostas àquelas que faríamos. Receber um cliente sem a autoimposição de saber o que fazer para que este encontre uma solução é libertador, pois nos abre caminhos para exploração curiosa. Juntamente com isso pode nos gerar inseguranças e angústias, afinal, podemos pensar: se essa pessoa me contratou para
chegar a uma meta, eu não deveria saber o que fazer, especialmente se já passei por um problema parecido? Não acredito que exista a forma certa (em si) de agir, ou seja, uma verdade absoluta que pode guiar nossos passos à solução definitiva para nossas questões. Penso que existam formas diversas e únicas, que dependem de inúmeras variáveis, como contexto, intenção, pessoas envolvidas, valores, desejos, além de tantas outras.
Lidamos nos processos de coaching normalmente com questões complexas, território onde existem muitas possibilidades e a ideia central do processo deve ser permeada muito mais pela elaboração, pela reflexão para a ação do que pelo compromisso com a solução definitiva e inequívoca de problemas.
A serviço de quê estão as perguntas no processo de Coaching?
A profissão de coach nasceu no meio esportivo, com a proposta de levar atletas ao seu máximo desempenho. Hoje vemos que podemos mais, fomos aprimorando nossa técnica e, com isso, ampliando nossa área de atuação. Ocupamos um espaço profissional que estava vazio, que é o espaço do “falar de si” isento de conotações psicoterapêuticas ou religiosas. Nossa proposta não é a de tratamento ou de cura.
Vejo o desconhecimento das pessoas em geral sobre o que pode um processo de coaching e tenho percebido também um certo preconceito, tanto de algumas linhas de coaching quanto de psicoterapeutas e analistas, quando se fala em coaching pessoal. Acredito que precisamos caminhar juntos no sentido de nos esclarecermos e a partir daí podermos esclarecer sobre qual o caráter das intervenções no âmbito do coaching.
Podemos pensar em intervenções focadas em resultados mas vejo que quanto mais atuamos – tanto temporalmente quanto interdisciplinarmente – menos podemos determinar que estejamos focados apenas nos resultados. Será que temos pensado sobre o que nós coaches pretendemos ser? E em seguida caberia uma frase do filósofo Gilles Deleuze, “trata-se de julgar da pertinência e da legitimidade das pretensões”, pois por ‘pretender tudo ou qualquer coisa’ podemos ‘perverter o juizo’.” (Deleuze, 1997, p.154).
Fica portanto mais uma questão: estamos pretendendo muito?
O processo de coaching é “feito de perguntas”, isso todos sabemos, no entanto não se trata de um processo feito de qualquer pergunta. O ponto de partida para a elaboração de uma boa pergunta é checarmos nossa intenção ao fazê-la. Por que e para que você está questionando seu coachee? Qual a sua visão sobre o tema que ele traz? Quais filtros, que mapas guiam seu fazer profissional?
Junto com nossas perguntas vai sempre um pouco de nós mesmos. O processo é do coachee, mas as perguntas são nossas. Não estamos apartados do processo, precisamos nos implicar nele (e repito) – o que é absolutamente diferente de nos comprometermos com a solução da questão ou o atingimento da meta. Não somos observadores neutros ou isentos. Afetamos e somos afetados por cada interação.
É nosso dever como coaches questionarmos e criticarmos alguns mitos que começam a se estabelecer em nosso meio e um deles é sobre a “isenção de julgamento” do coach. Sinto muito, isso não é possível. O que podemos fazer é tentar “limpar” nossas perguntas (e digo tentar porque nem sempre conseguiremos, somos cegos aos nossos próprios automatismos), para que elas não direcionem a resposta e permitam um verdadeiro espaço de reflexão, isento de julgamentos moralizantes de nosso cliente.
Chamo de julgamento moralizante quando pensamos que nossa opinião sobre uma questão deveria ser a opinião de todos e agimos nesse sentido. Exemplifico: se julgo que roubar é errado e penso que todos deveriam pensar da mesma forma, posso tornar esse julgamento moralizante se atuar no mundo nesse sentido, seja condenando, seja tentando convencer outros a pensarem como eu, a despeito de suas próprias convicções.
Penso que ser acompanhado por um supervisor, prática bastante comum nas profissões de ajuda, pode colaborar imensamente para atingirmos um patamar de excelência em nossa atuação, pois nos ajuda a vermos além, a explorarmos desdobramentos e iluminarmos pontos obscuros e (talvez) viciados em nossa prática.
Referência Bibliográfica: DELEUZE, G. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
Káritas Ribas
Pesquisadora em Complexidade, Mestre em Biologia-Cultural, Filósofa, Psicanalista e Coach com Formação Ontológica – PCC pelo ICF. Sócia-fundadora do Appana Território de Aprendizagem.
Reedição dos textos publicados pela autora na seção “Um Outro Olhar”, da Revista Coaching Brasil, Edições 20 e 21 (2015).
Conheça a Formação em Coaching Ontológico do Appana, ministrado por Káritas Ribas (www.appana.com.br/formacao-em-coaching-ontologico/) e também as Supervisões para Coaches no Território Appana (https://www.appana.com.br/supervisoes/) .